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Os portões de ferro ainda estão lá

Atualizado: 21 de jul.

Não exatamente os mesmos, pois tinham um tom de tinta diferente, seguranças mais rígidos e várias catracas digitais, dessas que escaneiam rostos, cartões e QR codes. Mas a sensação de atravessar a entrada do zoológico me fez recordar uma infância em que aquele lugar parecia um pedaço do mundo traduzido em caminhos de terra.


Naquela época, bastava uma moeda, um pão com mortadela, um refrigerante “caçulinha” e o olhar encantado para fazer do domingo uma aventura. O zoológico era um portal para um mundo e não apenas um comércio.


Lembro do cheiro de mato molhado, do vento que varria as folhas secas, do lago que misturava a brisa ao lodo, da algazarra das famílias e da minha mão miúda segurando firme a do meu pai, que me dizia para não correr tanto. E eu corria mesmo assim.


Havia uma paz silenciosa em ver um elefante dormindo ou um leão coçando as costas nas pedras. Havia um respeito quase sagrado pelo tempo dos bichos.


Hoje, enquanto caminho pela nova entrada, percebi tudo cuidadosamente ensaiado. Equipe treinada para um verdadeiro “cara-crachá”, sem a cortesia de outrora em dar as boas-vindas e sorrir com sinceridade. O verde deu lugar a concreto vitrificado. Até bandeirinhas de festa junina apareceram. As placas agora são interativas, ainda mais impessoais. Um QR code substitui o guia, um app informa a “atualização do humor” de cada animal. Vi que a girafa está “neutra”.


O valor do ingresso não é para qualquer um. Uma família com dois filhos gasta 1/6 do salário-mínimo. Há filas para tudo: para entrar, para acessar o banheiro inteligente, para comprar água com sabor de clorofila. Há até fast food temático: hambúrgueres de javali ao lado do espaço do próprio javali.


As jaulas mudaram de nome, agora são “ambientes cenográficos de simulação ecossistêmica”. Mas, ainda assim, é uma jaula, até pior do que antes, luzes, câmeras e acessórios para os animais os deixam mais apáticos e inertes. Com mais vidro, menos espaço, menos sombra.


Os animais, antes silvestres, agora têm nomes de celebridades. O tucano chama-se Luccas Neto. As araras fazem parte do Mundo Bita. Um mico parece olhar para mim com a mesma decepção que carrego no rosto. Ele, pelo menos, não precisa fingir que está se divertindo.


Alguns bichos nem estão mais lá. O tamanduá-de-colete foi realocado “para fins de estudo genético”. O urso-de-óculos, segundo a atendente com crachá bilíngue, foi removido por “baixa interação do público”.


As crianças ao meu redor sorriem. Sorriem para selfies, não para os bichos. Sorriem para filtros com orelhinhas em cada totem eletrônico no meio da trilha. Talvez nem saibam que o leão, aquele mesmo que dormia sob o sol, já não ruge há anos.


O mais triste foi perceber que preferiram o parquinho, que agora ocupa o espaço da antiga arena de educação ambiental que antes reunia crianças e educadores para falar sobre o ciclo da água, a cadeia alimentar ou o cuidado com a fauna, agora solo de parquinho inflável e personagens animatrônicos. Já não se ouve mais o educador explicando por que o tamanduá usa a língua comprida ou por que o tatu cava buracos. Em seu lugar, bonecos dançantes e jogos interativos disfarçam a ausência de diálogo real com a natureza.


Entre as trilhas, de uma alameda à outra, uma loja gigantesca. Pelúcias, bonés, canecas, camisetas, chaveiros. Compre um elefante de pelúcia por R$ 240 e leve grátis a ilusão de que ajudou na preservação da espécie. Lá se vai mais 1/6 do salário.


Ali perto, um show de focas começa com música eletrônica. Um holograma narra a importância dos oceanos enquanto as focas batem palmas em sincronia. Um espetáculo, dizem. Mas as crianças ao lado perguntam: “é de verdade?” Não, apenas artifícios da inteligência artificial.


A antiga lanchonete, próximo as girafas, virou uma cafeteria gourmet. O café preto por R$ 2 cedeu espaço ao capuccino de castanha-do-pará por R$ 18. Cookies veganos, lanches naturais, mini hamburgueres de soja, agora se vendem por preços em dólar. E o velho vendedor de algodão-doce? Talvez tenha virado QR code também.


Em um canto mais afastado, encontro o que restou do velho viveiro. Meio esquecido, sem tantas luzes, sem trilha sonora. Um papagaio diz “bom dia”. Não sei se aprendeu com os visitantes ou se apenas repete por inércia.


Percebi que a tristeza não está no progresso, mas na ausência de alma.


Fico por alguns minutos observando um casal de tamanduás-bandeiras. Eles parecem exaustos. Olham o nada, se arrastam para o canto sombreado. Um menino ao lado pergunta: “Ele está triste, mãe?” Ela não responde. Oferece um sorvete e diz: “Vamos ver os robôs no Mundo dos Dinossauros?”


Antes de ir embora, passo pelo mapa do parque. A última parte do zoológico é a “Loja de Experiências”. Como fã de pelúcias, me animo, apesar dos altos preços. Mas a decepção veio junto: lá, pode-se pagar para acariciar um bicho digital com óculos de realidade aumentada. Há filas. Muitas filas.


Saio em silêncio em direção ao estacionamento. Até as barracas de lanche de pernil, ali em frente, se perderam para dar espaço as vagas de estacionamento. Não podia ser diferente, um silêncio me tomou e gritou.  


Aqui fora, os portões de ferro continuam imponentes, altos cercando todo o zoológico. A multidão continua chegando, todos animados para entrar, num contraste com a apatia daqueles que saem. Os tempos mudaram.


Talvez um dia tudo vire holograma. Talvez a próxima geração sequer precise caminhar entre árvores ou sentir o cheiro do mato molhado para dizer que “foi ao zoológico”. Bastará vestir uns óculos, deslizar o dedo na tela e selecionar o animal do dia. Ninguém mais vai correr tanto ao ponto de um pai dizer “vai devagar”. Ninguém vai correr. Tudo estará ali, pronto, simulado, domesticado.


E ainda assim, cá estamos. De um lado, o passado feito de pão com mortadela e chão batido. Do outro, um presente cravejado de QR codes, vitrines digitais e lanches americanizados. No meio, nós, os espectadores de um tempo que desaprendeu a ver com olhos encantados. Os portões do zoológico continuam lá, mas talvez sejamos nós os verdadeiros enjaulados.



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