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As palavras que nos criaram e o silêncio da velhice

A janela da cozinha dava para um escadão, todo torto e inclinado, onde mesmo os mais novos tinham dificuldade em se sustentar. E lá vinha a Tia Cássia com seu humor agridoce, sempre pronta para uma conversa que começava na política e terminava com café. “Everton, o Lula é bom para o povo, mas tem que ver… o FHC também fez coisa boa, viu?”, dizia ela, mexendo o café preto no bule de alumínio. Eu, ainda jovem, tentava entender aquele equilíbrio: não se tratava de bandeiras, mas de como a vida chegava, ou não, até o quintal de casa. “O Bolsa Família ajuda muita gente, meu filho, mas também tem quem se aproveite”, completava, com aquele jeito de quem não vê o mundo pela televisão, mas o vive entre as travessas e escadarias.


Lá no outro bairro, meu avô, Carreiro, sentado na cadeira de madeira, pouco entrava nesses tipos de conversas. Mineiro, negro, sem estudos, ele carrega nos ombros o peso de uma vida inteira de trabalho. Não discute política com a mesma vivacidade da cunhada, mas, quando falava, seu mundo se abria: “Eu queria mesmo era voltar pra Minas, pra vida pacata, plantar na roça, ver o sol sumir atrás do morro.” Raramente volta. Ficou preso às promessas que a cidade grande faz e nunca cumpre.


Essas conversas, hoje, me soam como relicários de um Brasil que envelhece e que, ao envelhecer, leva junto uma maneira de debater e de viver. Não havia rede social, nem notícia instantânea; havia a cozinha, a sala, o café e a palavra. E a palavra tinha peso. Era repetida, mastigada, contestada. E ficava.


O Brasil, entretanto, mudou de ritmo. De acordo com o IBGE, nossa expectativa de vida saltou de 45 anos em 1940 para 76,2 anos em 2022. O número de idosos deve dobrar nas próximas décadas, chegando a quase 70 milhões de pessoas até 2060. Vivemos mais, mas, para muitos, esse “mais” é feito de menos: menos mobilidade, menos companhia, menos escuta.

 

O geógrafo Milton Santos, em Por uma Outra Globalização (Ed. Record, 2000, 186 p.), lembrava que o desenvolvimento não é apenas crescimento econômico, mas também preservação de vínculos e culturas. Se aplicarmos essa lente ao envelhecimento, percebemos o quanto a ruptura dos laços, entre filhos que se mudam e comunidades que se desfazem, enfraquece a própria experiência de viver mais. Bauman, em Tempos Líquidos (Ed. Zahar, 2021, 120 p.), nos ajuda a compreender por que aquelas conversas da cozinha são hoje raridade. Vivemos em relações frágeis, efêmeras, onde até os diálogos com pais e avós se comprimem em minutos de ligação, áudios apressados e videochamadas curtas. A longevidade, assim, ganha um paradoxo: nunca se viveu tanto, e nunca se esteve tão só.


A Tia Cássia, com suas opiniões que não cabiam em rótulos, e meu avô, com seu sonho mineiro não realizado, depois de tantos anos me ensinaram algo que nenhuma estatística revela: envelhecer não é apenas contar mais anos, mas carregar a história do país dentro de casa. As palavras que eles me deram, sobre política, trabalho, criação de galos e porcos, sobre vida, são tijolos de um Brasil que resiste. E, no entanto, quando a voz deles se cala, o silêncio é mais do que ausência: é um vazio que ecoa na própria ideia de futuro.


O Brasil envelhece em um ritmo sem precedentes. O Censo de 2022 mostra que 10% da população brasileira tem 65 anos ou mais. Um aumento de quase 60 % em relação a 2010. 15% da população já superou os 60 anos, o equivalente a cerca de 32 milhões de pessoas. Esse processo, que em países como a França levou mais de um século, ocorreu aqui em cerca de 25 anos. A velocidade dessa transição traz implicações profundas para famílias, políticas públicas e para a própria experiência de envelhecer.


A razão de dependência demográfica dos idosos, que expressa a relação entre o número de pessoas com 65 anos ou mais e a população em idade ativa (15 a 64 anos), quase triplicará até 2060: de 14 para 42 idosos para cada 100 adultos. O conceito de envelhecimento ativo, proposto pela Organização Mundial da Saúde e refletido no contexto brasileiro por Figueira e colaboradores (2020), enfatiza que a longevidade só se traduz em qualidade de vida quando combinada a três pilares: saúde, participação social e segurança. Pesquisas mostram que manter a autonomia funcional, praticar atividades físicas e preservar a vida comunitária são fatores decisivos para envelhecer com disposição (Maia et al. 2020).


Contudo, a realidade mostra um cenário mais complexo. O ELSI-Brasil identificou uma prevalência crescente de limitações para atividades instrumentais da vida diária, como manejar dinheiro, cozinhar ou locomover-se fora de casa. Pagamentos com notas deram espaços ao Pix e QR Codes, que os levam à dependência digital. Essa perda de autonomia aumenta o risco de isolamento social, depressão e vulnerabilidade a abusos. Aqui, o silêncio não é apenas ausência de som, mas um apagamento da presença social dos mais velhos. Na sociedade líquida de Bauman, as conexões frágeis e apressadas reduzem as conversas que antes moldavam famílias e comunidades a trocas esporádicas e superficiais. Assim, viver mais, sem garantir saúde, vínculos e participação, é condenar parte significativa da população a uma longevidade sem voz. Um tempo de vida estendido, mas esvaziado de sentido.


Apesar de vivermos mais, o prolongamento da vida não garante, por si só, um envelhecer pleno. Para muitos, esses anos extras são habitados por limitações físicas, lares silenciosos e a distância geográfica dos filhos. É uma solidão estatisticamente mensurável: segundo o ELSI-Brasil, mais de 15% dos idosos vivem sozinhos, e cerca de um terço relata sentir-se socialmente isolado com frequência. Para além dos números, há histórias como a de meu pai, Garcia. Que viveu a vida como proletário, moldando sua trajetória no esforço diário de quem aprendeu a trabalhar antes de sonhar. Concluiu os estudos já adulto, pelo Instituto Universal Brasileiro, numa época em que estudar a distância era por correspondência, um verdadeiro ato de resistência intelectual para quem trabalhava mais de oito horas por dia. Essa conquista, contudo, não garantiu um envelhecimento ativo. Hoje, aposentado, vê-se com poucas alternativas de ocupação diária: a rotina doméstica se repete, os amigos de outrora estão distantes ou já se foram, e as opções de lazer e aprendizagem raramente dialogam com suas experiências e interesses.


Esse hiato entre o tempo livre e a falta de oportunidades de usá-lo de forma significativa é discutido por Marília Berzins em Políticas Públicas para um país que envelhece (Ed. Martinari, 2012, 304 p.), ao afirmar que a aposentadoria, sem políticas de reinserção social e profissional, pode acelerar o declínio funcional e a sensação de inutilidade. Robert Butler, pioneiro no estudo do envelhecimento e criador do termo ageism (etarismo em tradução livre), alertava que sociedades que não oferecem papéis sociais aos mais velhos acabam por invisibilizá-los, mesmo quando estão fisicamente presentes.


Em A Revolução da Longevidade, Valéria Martins (Ed. Alaúde, 2021, 200 p.) reforça que viver mais exige não apenas políticas de saúde, mas também um ecossistema que promova educação contínua, trabalho adaptado e participação comunitária. Sem isso, os anos a mais tornam-se anos à margem. Vejo isso no olhar de Garcia: a disposição física ainda existe em parte, mas o cenário ao redor pouco convida a usá-la. É como se o corpo estivesse pronto para caminhar, mas a cidade não lhe oferecesse calçadas, e a comunidade, não lhe oferecesse companhia. Tanto que viaja de uma cidade à outra para caminhar.


Zygmunt Bauman, em Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (Ed. Zahar, 2022, 216 p.), observa que o afastamento físico e afetivo entre gerações enfraquece a circulação da memória e do afeto. Quando os filhos se mudam para longe, quando o convívio diário se restringe a datas marcadas, o cotidiano dos idosos se torna uma coleção de dias sem testemunhas. Para Garcia, isso se traduz em tardes longas e silenciosas, em que a televisão preenche um espaço que antes era ocupado por conversas, risos e histórias.

Assim, o envelhecimento que hoje celebramos nas estatísticas, porque, claro, é inegável que viver mais é uma conquista, também nos desafia a encarar um paradoxo: sem saúde plena, sem vínculos e sem ocupações que deem sentido aos dias, o tempo adicional pode se transformar em um prolongamento da espera. Uma espera pela visita dos filhos, por uma ligação inesperada ou por algo que os tirem da repetição e os coloquem, de novo, em movimento.


Na minha família, as palavras não vieram em discursos preparados ou livros de cabeceira, mas no calor da cozinha, na firmeza do olhar e nas mãos calejadas. Vieram da Tia Cássia, sempre pronta a debater política com a coragem de quem fala o que pensa; do meu avô, que me ensinou sem saber, a ter a sutileza e serenidade do povo mineiro; e de Garcia, meu pai, que atravessa a vida pela estrada mais íngreme e que sempre lutou para ver os filhos no topo, mesmo sem ter estado lá. Mas há também, o outro lado da velhice. Como Dejanira, minha avó, cuja vida é um ato diário de renúncia.


Não vive a aposentadoria como descanso. Ainda sustenta parte dos filhos, não por heroísmo, mas por necessidade. Ela é o retrato de um envelhecimento invisível às estatísticas: o de mulheres idosas que, em vez de receber cuidado, continuam a ser a base de sustento emocional e econômico da família. Abdicou do direito de envelhecer para si mesma; suas horas são distribuídas entre cuidar, cozinhar, resolver problemas alheios e guardar preocupações que não são mais dela, mas que insistem em permanecer.


Essas histórias não são exceção minha. Lá na Unifesp, nos acostumamos a dizer que Diadema é um laboratório vivo, um micro ecossistema que representa o Brasil. Todas as pessoas que citei são de lá, incluo-me nesta. O Brasil é um mosaico de realidades paralelas. Há quem viva a velhice com viagens, grupos de dança e encontros culturais; e há quem viva-a em jornadas intermináveis de cuidado, com pouco tempo para si. Há idosos que têm tempo, mas não têm ocupação; e outros que têm ocupação demais para o tempo que lhes resta. E no meio disso, há milhões de brasileiros tentando equilibrar saúde, renda e afeto, para que a velhice seja muito mais do que sobrevivência.


Esse contraste nos obriga a encarar uma pergunta incômoda: o que fizemos com as palavras que herdamos? Estuda para ser alguém na vida, respeite os mais velhos, não desperdice comida. Frases como essas, ditas por pais e avós, moldaram gerações. Mas, se moldaram, também exigiram deles um preço, o de colocar o futuro dos outros à frente do próprio presente. Hoje, essas palavras ecoam em casas mais silenciosas, muitas vezes sem quem as repita, porque aqueles que as disseram agora se encontram sozinhos ou sobrecarregados.


A força dessas palavras herdadas está na memória afetiva que carregam, mas também na dívida ética que nos impõem: se fomos formados por elas, somos também responsáveis por garantir que quem as disse possa viver a velhice com dignidade, liberdade e cuidado. E é aí que a sociedade brasileira ainda falha. O que significa envelhecer com dignidade em um país que ainda não aprendeu a cuidar de seus idosos? É mais do que garantir aposentadoria ou atendimento médico. É oferecer espaços para que o corpo se mova, para que a mente se expanda, para que o afeto circule. É reconhecer que a longevidade não é só um número nas estatísticas do IBGE, mas uma conquista coletiva que exige corresponsabilidade.


Se não criamos condições para que os idosos vivam com autonomia, se não fomentamos vínculos intergeracionais, se não asseguramos oportunidades para que a velhice seja também tempo de aprender e ensinar, estaremos apenas alongando a espera.


Para finalizar, na última semana de julho, despedi-me da minha tia-avó Cássia — Doraci Viesba nos registros, Tia Cássia para todos nós. Ela não teve a chance de desfrutar plenamente da velhice. Sua vida foi marcada pelo cuidado com o outro, pela atenção à comunidade, pelo olhar atento aos que nada tinham. E mesmo quando o corpo já pedia descanso, ela seguia ocupando-se mais com as necessidades alheias do que com as próprias.


Sua partida deixa um vazio imenso, mas também um legado luminoso. Tia Cássia ensinou, sem precisar de discursos, que viver em sociedade é, antes de tudo, cuidar uns dos outros. Que a política se faz no café compartilhado, que a solidariedade é mais forte quando começa na vizinhança. Ela foi ponte entre gerações, memória viva de um tempo em que a palavra dada tinha peso e a mão estendida era a primeira resposta.


Hoje, ao lembrar de suas conversas sobre política, suas observações certeiras sobre o mundo, percebo que sua herança mais valiosa não está em objetos ou bens, mas no exemplo de vida. O Brasil envelhece rápido, mas se quisermos que envelheça bem, precisaremos seguir o que ela praticou: ver no outro um compromisso, e não um peso. Assim, a saudade que ela deixa se transforma em convite, o de construirmos uma velhice digna, para todos o que aí estão, inclusive, para nós mesmos no futuro. Cássia, presente!

 

Referências

 

FIGUEIRA, O. et al. Estratégias para a promoção do envelhecimento ativo no Brasil: uma revisão integrativa. Research, Society and Development, [S.L.], v. 9, n. 10, p. 1-15, 23 set. 2020. Research, Society and Development.

 

MAIA, L. C. et al. Robust older adults in primary care: factors associated with successful aging. Revista de Saúde Pública, v. 54, p. 35, 2020.


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