Livros Vivos, Corpos-Palavra, Vozes-Raiz: uma inspiração que anda de sandália e carrega um bairro nas costas
- Prof. Me. Everton Viesba
- 21 de jun.
- 7 min de leitura
Certamente você conhece ou já ouviu falar de uma “Cássia”. Seja nas comunidades, favelas, núcleos habitacionais ou vilarejos. O nome é Cássia, mas poderia ser Maria, Antônia, Joana, Benedita, Elza. Ela é uma entre tantas. Uma das milhares de lideranças comunitárias que mantêm a periferia viva enquanto o Estado hesita, enquanto os gabinetes silenciam, enquanto os projetos públicos evaporam.
Ela que nunca escreveu um livro. Mas é o tipo de gente que a gente cita mesmo sem saber. Não tem um diploma para pôr na parede, mas tem todo o saber e reconhecimento das ruas. E nela, aprendi mais do que em muito seminário. Sua voz não saiu em podcast, mas ecoou nos escadões, nas travessas entre uma rua e outra, nos corredores do posto e nas filas da prefeitura. O nome dela não está gravado em placa, mas está escrito nas memórias de um bairro inteiro. E isso, meus caros, eu aprendi com Conceição Evaristo, que “escrevivência é quando a lembrança vira chão.”
Tia Cássia é minha tia, mas poderia ser sua. Há dezenas de “Cássias” espalhadas pelo Brasil afora. Ela anda de sandália, daquelas que não saem da porta da casa, porque a qualquer momento é preciso calçar e ir resolver alguma coisa de alguém. No braço, uma sacola plástica com documentos, algum biscoito e papeis, sempre muitos papeis. Na outra mão, um celular antigo, que toca sem parar: gente pedindo ajuda, conselho, escuta, socorro. Há algo de Krenak na postura dela, não como líder que se impõe, mas como corpo-território que abriga, resiste e conversa. “Ideias para adiar o fim do mundo?” (Ed. Companhia das Letras, 2019, 68 p.), ela já teve várias, e nenhuma delas precisou de PowerPoint.
A primeira vez que a vi interpelar um funcionário público, eu era criança. Ela não gritava, mas falava com uma firmeza que parecia vir do centro da terra. E aquilo me ensinou o que Paulo Freire chamava de “postura crítica” – uma coragem enraizada, não ensaiada. Ali, diante do balcão da UBS Casa Grande – Diadema-SP, ela foi advogada sem toga. Falava em nome de uma mãe humilhada, de um vizinho esquecido, de uma causa invisível. E não havia juiz, apenas gente cansada tentando ser ouvida, este é o dia a dia da periferia. A periferia aqui é “a minha quebrada”, lugar onde nasci, cresci e me formei nos primeiros 30 anos de vida. O bairro, ou núcleo habitacional, é o Santo Ivo. Um nome que, ironicamente, homenageia o padroeiro dos advogados. Mas os verdadeiros processos aqui são outros.
Foi no Santo Ivo que inúmeras vezes vimos boletins de ocorrência não registrados, violências silenciosas, filhos presos pela ausência de oportunidades. Lá, também entendi que Tia Cássia é uma dessas mulheres que caberiam num livro de bell hooks sobre amor e justiça social. Só que, em vez de estar na epígrafe, ela está na prática. É quem serve o café, mas também organiza o protesto. Quem chora com a dor do outro, mas que não deixa de rir com gosto, ela é corpo-palavra porque tudo o que faz é discurso em ação, ela é voz-raiz porque não repete o que ouviu, mas cria sua fala a partir da escuta atenta da necessidade do outro, ela, assim como tantas outras mulheres líderes da quebrada, é livro-vivo porque vai além da tese, ela mostra no cotidiano sobre como sobreviver com dignidade sem precisar vencer ninguém. E isso, nenhum manual de liderança ensina.
Em Paulo Freire, na “Pedagogia da Esperança” (Ed. Paz & Terra, 2020, 336 p.) aprendemos que as pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo, e ela assim se fez referência – sem cargo, mas com causa, nunca precisou de crachá pendurado no peito para ser reconhecida. Sua legitimidade não vinha de atas, mas de afetos. Ela se fez referência mediando o mundo, traduzindo o sistema para quem só recebia silêncio institucional como resposta. Na lógica perversa do prestígio acadêmico e político, quem não tem certificação não tem voz. Mas no cotidiano entendemos que são essas as vozes que mantêm as comunidades de pé. Como ignorar o tipo de autoridade que se constrói com coerência, com presença constante, com afeto sem recompensa? Como diz bell hooks em “Ensinando a Transgredir” (Ed. WMF Martins Fontes, 2024, 270 p.), ensinar é um ato político. E viver como a tia vive é educar com o corpo inteiro, todos os dias...
Ser referência, no caso dela, é cumprir a palavra dada na calçada. É chegar junto quando todo o resto falhou. É ensinar sem montar PowerPoint, sem decorar bibliografia, mas sabendo, por exemplo, onde mora o menino que precisa de cesta básica, qual pai foi humilhado no posto de saúde, qual mãe precisa de ajuda com os documentos da pensão. A pedagogia da tia Cássia é uma pedagogia da presença, da ação que não precisa ser explicada por que é evidente. Lélia Gonzalez dizia algo como “o lugar de fala não é onde você fala, mas de onde você vive”. E a fala da tia é cheia de autoridade justamente porque ela fala do lugar que muitos se recusam a escutar: a ponta do bairro, o fundo do barraco, o meio da fila. Sua didática é feita de paciência, de indignação equilibrada, de cuidado com os detalhes e de firmeza quando é hora de confrontar o que não pode mais ser varrido para debaixo do tapete.
Você, leitor, leitora, pode não viver a realidade da periferia, mas certamente você a vê nos jornais, no cotidiano, e é importante que reconheça que muitos dos nossos maiores mestres não pisaram numa universidade, mas deixaram rastros de humanidade por onde passaram. A referência que a tia constrói é parecida com o que Djamila Ribeiro propõe em “Quem tem medo do feminismo negro” (Ed. Companhia das Letras, 2018, 120 p.) uma ética relacional, que exige escuta, empatia, reposicionamento. Ela ensina isso não em sala de aula, mas nas ruas. Cada escolha dela, desde o que leva para as reuniões até o jeito que ouve quem ninguém ouve, é conteúdo pedagógico. Por isso, não há como separá-la daquilo que chamamos de “formação”. Ela forma pelo exemplo. E como bem escreveu Boaventura de Sousa Santos, em “A difícil democracia” (Ed. Boitempo Editorial, 2016, 224 p.), precisamos aprender a reconhecer “saberes insurgentes”, que não se dobram às lógicas da colonialidade, do mérito individual ou da técnica desumanizada. A tia é um saber insurgente com sandália nos pés.
Lá, no Santo Ivo, a história da periferia se repete todos os dias. Um bairro com nome de santo, mas com gente que tem que fazer milagre com o salário mínimo. Santo Ivo é, segundo a tradição católica, o padroeiro dos advogados. Mas a maior defensora daquele território não estudou Direito. Estudou a dor, o desamparo e a justiça possível. Por isso digo: foi nesse pedaço de chão chamado Santo Ivo que conheci uma advogada sem toga — minha tia. E se existe justiça ali, é porque ela foi escrita à mão, pela solidariedade que ela promoveu. Se formos pensar com Grada Kilomba, como posto em “Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano” (Ed. Cobogó, 2019, 249 p.) ela performa uma desobediência epistemológica diária: produz saber sem chancela acadêmica, sem autorização institucional. E justamente por isso, seu saber é tão potente. É ali, entre o balcão da UBS e a fila da creche, que ela compõe a verdadeira pedagogia popular. Com ela, ninguém é só estatística. Todo mundo vira nome. Todo nome vira urgência. E toda urgência vira ação.
Com ela, aprendi que a rua não é só passagem, é método. É ali que ela ensina sem dizer, que orienta sem impor. Na rua, aprendemos com os outros e ela tem nos ensinado a reclamar com firmeza, a se informar, a agir com dignidade. Para além dos muros da sala de aula e dos palcos da igreja, a rua foi sua escola e seu púlpito. Por isso hoje a trago aqui, como foco deste artigo, representando dezenas de milhares de lideranças comunitárias que merecem se tornar visíveis. Tia Cássia é um desses livros que a gente não encontra na prateleira, mas que moldam nossa visão de mundo. Atua na saúde, na habitação, na defesa das crianças e adolescentes, no banco de alimentos, na militância política, na fé cristã.
Tia Cássia é uma, mas representa centenas de milhares. Lideranças populares, comunitárias, espirituais, pedagógicas e afetivas que, sem cargos, cargos de confiança ou currículos reconhecidos, sustentam o tecido frágil das periferias brasileiras. Sua figura ecoa nas páginas de “Quarto de Despejo” (Ed. Ática, 2015, 200 p.) de Carolina Maria de Jesus, onde a luta diária por dignidade, comida e palavra também é feita por uma mulher negra, pobre e sábia, uma voz que, como a de Cássia, ergue-se com coragem mesmo quando tudo à volta tenta silenciá-la. Sua força também pulsa nas personagens de “Torto Arado” (Ed. Todavia, 2019, 264 p.), de Itamar Vieira Junior. As irmãs Bibiana e Belonísia, mulheres do sertão, da terra e da palavra, vivem à margem das decisões, mas no centro da luta. Como Cássia, elas transformam dor em prática política, ancestralidade em sabedoria e silêncio em gesto. A comunidade gira em torno delas, não por imposição, mas porque reconhece nelas um eixo ético.
Ela é, enfim, um rosto entre muitos. Um nome entre tantos que seguem apagados nos relatórios oficiais, mas lembrados entre os corredores estreitos e escadarias da comunidade. Sua prática diária se inscreve na tradição de Maria Aragão, de Luiza Mahin, de Antonieta de Barros, de mulheres e homens que, mesmo sem cátedra, tornaram-se mestres. Reconhecer Cássia como símbolo vivo dessas lideranças é também denunciar a desigualdade na distribuição de reconhecimento. E é, sobretudo, afirmar: sem essas pessoas, o Brasil ruiria. Enquanto há tempo, é preciso dizer: as referências estão vivas. Estão na esquina, na fila do SUS, na reunião de pais, na cozinha compartilhada. Não as deixemos virar estatística antes de virar história. Como nos adverte Audre Lorde, “nossa tarefa é não apenas sobreviver, mas florescer.” E isso só é possível se aprendermos com quem já floresce há muito tempo, ainda que em solo seco.
Afinal, quem são as vozes-raiz do seu bairro? Quem te ensinou a ser, mesmo sem escrever nada? Reconhecer essas presenças é também reescrever a sociedade. E isso, querido leitor e querida leitora, talvez seja o gesto mais urgente desse nosso tempo comum.

Everton Viesba e Doraci Viesba, conhecida como Cássia.
Foto: Associação de Moradores do Núcleo Habitacional Santo Ivo, Diadema – SP.
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