José Guilherme Franchi
São Paulo, 12 de agosto de 2021
Desastres naturais são comumente entendidos como manifestações intrínsecas à dinâmica - interna ou externa - de nosso planeta, e que têm a capacidade de ocasionar efeitos adversos a alguma comunidade. Antes de mais nada, deve-se deixar claro que, eventos que entendemos “desastrosos” - como erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis, inundações, secas, furacões, ondas de frio ou de calor, incêndios florestais, deslizamentos em encostas de morros, ou mesmo eventos astronômicos, como a queda de um meteoro -, são “processos”, designados como geodinâmicos, que sempre tiveram ocorrência natural na história pregressa de nosso planeta, independentemente de suas consequências. São considerados como “desastres” quando interagem com alguma comunidade vulnerável, trazendo afetações negativas de natureza social, ambiental, econômica e patrimonial, superiores à capacidade de recuperação desta comunidade, o que irá implicar na necessidade de ajuda externa (e, não raro, exterior) a esta recuperação.
Ao longo da história tivemos desastres naturais com número de vítimas na casa dos milhões, principalmente em países muito populosos como a China, envolvendo secas e inundações. Terremotos - eventualmente acompanhados de tsunamis - têm o poder de gerar vítimas na casa de milhares e, mesmo, centenas de milhares.
Características marcantes, e que ditam as grandes consequências destes eventos, são o notório despreparo das nações na sua predição e enfrentamento. Assim, a Organização das Nações Unidas (ONU) começou paulatinamente a difundir, entre os países membros, o conceito de Redução do Risco de Desastres a partir da década de 1990 - declarada como a Década Internacional para a Redução dos Desastres Naturais (IDNDR na sigla em inglês) -, estimulando o investimento em metodologias para o mapeamento e avaliação dos riscos, bem como na minimização dos desastres. A recorrência dos desastres levou a mesma ONU a instituir, de forma mais permanente e sistêmica a partir do ano 2000, a Estratégia Internacional para a Redução dos Desastres (ISDR na sigla em inglês), com um enfoque diferenciado, objetivando direcionar as ações para uma convivência mais segura com os riscos e diminuição das vulnerabilidades.
Apesar destes esforços em nível internacional à redução dos riscos, não se conseguiram evitar as terríveis consequências de tragédias como o terremoto, seguido de tsunami, na ilha de Sumatra em 2004, que causou 180 mil mortes, 50 mil desaparecidos, e 500 mil desabrigados em 11 países; nem aquelas do terremoto ocorrido na Índia e Paquistão em 2005, com 75 mil mortes e 2 milhões de desabrigados; o Ciclone em Mianmar em 2008, que causou 80 mil mortes e 1 milhão de desabrigados; o terremoto no Haiti em 2010, em que 200 mil pessoas encontraram a morte e 3 milhões ficaram ao desabrigo; ou, ainda, o terremoto em Fukushima (Japão), em 2011, com 16 mil mortes, mais de 3 mil desaparecidos, 330 mil desabrigados um ano depois, e 160 mil pessoas evacuadas em função do vazamento radioativo de uma usina termonuclear.
No Brasil não temos vulcanismo e os terremotos são pouco expressivos em termos de intensidade e frequência. Isso não significa que não tenhamos os desastres naturais característicos de países de clima tropical úmido, de natureza predominantemente hidrológica e maiormente representados por inundações; seguem-se-lhes, ao longe, os escorregamentos de terra, ocorrentes nas declivosas encostas habitadas dos morros em grandes cidades.
Estes escorregamentos têm o poder de causar uma maior quantidade de vítimas fatais, ao passo que as inundações, os maiores prejuízos econômicos. São menos destrutivos que os terremotos, mas letais também.
É sobre estes eventos que este texto pretende discorrer, trazendo algumas reflexões acerca da imponderabilidade que marca os desastres naturais. Assim é que, apenas para citar alguns deles, ocorridos em tempos mais recentes, tivemos 1000mm de chuva precipitados num único mês (novembro) na região do Vale do Itajaí (SC), em 2008, que causaram 135 mortes; diversos desastres, também com inúmeras vítimas fatais, afetando Angra do Reis e Niterói (RJ), além de cidades em Pernambuco e Alagoas (cheias do rio Mundaú) no ano de 2010; e um janeiro de chuvas extremamente anômalas em 2011 na região serrana do RJ (municípios de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, etc.), ocasionando 965 mortes e cerca de 350 desaparecidos, naquele que é considerado o maior desastre natural em território brasileiro.
Vale ressaltar que estes últimos acontecimentos mobilizaram o governo federal para a edição da lei federal 12.608/2012, que instituiu no país a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, alterando e integrando-se a outros instrumentos de políticas públicas urbanas (como o Estatuto da Cidade e a Lei de parcelamento do solo urbano) e educacionais (como a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional); como novidade, bastante evidente em diversos artigos desta lei, nota-se uma grande ênfase aos aspectos voltados à prevenção de desastres - sem, no entanto, minimizarem-se aqueles voltados à mitigação, preparação, resposta e recuperação.
Estes episódios, conhecidos como “movimentos de massa” - entendidos, no meio técnico, como aqueles envolvendo solos, rochas e vegetação - ocorrem, principalmente por ocasião das estações chuvosas, em áreas inadequadamente ocupadas nas encostas dos morros e nas margens de córregos de grandes cidades brasileiras.
Escorregamentos de encostas, no Brasil, levaram a óbito 3412 pessoas residentes nestas áreas no período entre 1988 e 2015, segundo dados do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). Estas ocupações, de origem multicausal, são o reflexo da atração de grandes contingentes populacionais para as cidades, o que converteu as taxas de urbanização do nosso país numa das maiores do mundo - elas saltaram de 31% em 1940 para 85% em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Não como uma decorrência direta deste fato, mas, antes, por não representar uma questão de Estado convenientemente considerada pelos sucessivos grupos políticos que estiveram no governo,
o país nunca dispôs, exceto por programas isolados e de duração efêmera, de uma política habitacional consistente voltada à população de baixa renda.
Em consequência, considerações e questionamentos acerca do quão “naturais” são estes eventos nos ambientes urbanos se impõem como obrigatórias. As ocupações irregulares acabam por resultar como produtos das assimetrias sociais e de renda que marcam nossa sociedade e, assim, os desastres que elas induzem perdem aquela referida imponderabilidade, não devendo ser enquadrados como “naturais”, mas, sim, e com o perdão do desgastado bordão, tragédias anunciadas, uma vez que voltadas a estratos sociais em situação de alta vulnerabilidade.
O déficit habitacional no país foi estimado em 6,3 milhões de moradias no ano de 2015 pela Fundação João Pinheiro, inferindo-se, daí, que ao menos 25 milhões de brasileiros (12% da população) não têm uma solução habitacional adequada. Restou a muitas famílias brasileiras a alternativa habitacional de quem ficou sem alternativas: a ocupação do pior dos piores terrenos, topograficamente acidentados, distantes e periféricos aos centros urbanos, e na pior das piores condições de salubridade e segurança construtiva. A edificação nessas condições é realizada por intervenções no mínimo imprudentes e nem sempre acompanhadas de boas técnicas construtivas, sempre envolvendo desmatamentos, escavações que geram taludes subverticalizados, aterros não compactados e instáveis, além da disposição de resíduos e águas servidas a céu aberto. O resultado é a geração das áreas de risco, que refletem, de modo perverso, áreas urbanas marcadas pela exclusão por renda: moradias precárias, insalubres e vulneráveis aos processos geodinâmicos que aquelas intervenções induzem.
Que lições, então, se podem depreender desta modalidade de desastres, nem tanto naturais, recorrentes ano após ano e que tantas vítimas já produziram? Que consequências ambientais trazem às cidades? Seriam manifestações inexoráveis da natureza, das quais as comunidades afetadas estariam indefesas? Como deles se defender? Responder tais perguntas não é exercício futurístico e alinha-se, a seguir, alguns elementos de reflexão acerca de como educação e vontade política podem contribuir à construção de cidades resilientes - uma campanha do Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNISDR, na sigla em inglês), que visa a sustentabilidade das cidades e a capacitação das pessoas para a redução de suas vulnerabilidades a ameaças.
Reconhecer e perceber o risco é o pilar principal à adesão a medidas mitigadoras. A toda e qualquer possibilidade de desastre corresponde um risco; a percepção e o grau de informação que se têm deste risco definem a resiliência da comunidade em risco:
a educação é reconhecida como a única maneira de um povo deixar a miséria e pobreza sem a elas retornar.
Mas, de um modo geral, as comunidades residentes em áreas de risco são muito refratárias a abandonar o local quando assim instadas pelo poder público, seja pelo não oferecimento de alternativa habitacional satisfatória, seja em função de pretensas sensações de “familiaridade” ou “controle” da situação de perigo a que estão expostas. Como à percepção equivocada do risco a que estão submetidas alia-se a escassez de recursos financeiros do poder público, as soluções plausíveis invocadas pela ISDR repousam na produção de elementos e conhecimentos que confiram autoproteção a estas comunidades através da convivência esclarecida com o risco. Assim, o reconhecimento das evidências do risco, isolada ou conjuntamente - degraus de abatimento no solo, janelas e portas emperradas, trincas nos pisos e paredes das moradias, surgências d’água no terreno, postes ou árvores inclinados, muros embarrigados, etc. -, são elementos diagnósticos da movimentação do solo em que a moradia se encontra e definem, em função de seu número e frequência, os cuidados e condutas a serem adotadas. Esse conhecimento deve estar de posse tanto das equipes técnicas municipais que gerenciam o risco - notadamente aquelas atuantes na defesa civil e assistência social, sem a elas se limitar - e que, para tanto, devem ser treinadas e capacitadas, quanto dos residentes destas áreas, que também devem ser chamados à participação ativa neste gerenciamento.
Este fortalecimento das políticas educacionais, voltadas ao gerenciamento do risco, deve se fazer acompanhar de políticas habitacionais igualmente consistentes, seja para o necessário controle da expansão urbana nestas áreas, seja pela realocação da população ali residente para áreas geologicamente vocacionadas à urbanização. Como referido anteriormente, a ocupação nestas áreas decorre da impossibilidade financeira das pessoas em adquirir terrenos nas áreas negociadas no mercado imobiliário formal. O oferecimento de verbas de apoio habitacional tem sido um mecanismo tradicionalmente utilizado como moeda de troca para viabilizar a desocupação em áreas de risco; no entanto, esta medida tem se mostrado inócua, quando não de eficácia questionável, na medida em que muitos dos beneficiados acabam por se instalar, novamente, em áreas de risco vizinhas, ou, pior, contribuem para a geração de novas áreas de risco. Assim é que, mais sábio e proveitoso para a municipalidade seria o investimento na aquisição, pelo poder público, de terrenos desocupados existentes em meio à cidade formalmente estabelecida, e que viessem a ser destinados a recepcionar de modo definitivo a população envolvida com o risco, procedimento que denotaria o cuidado e acolhimento de que este contingente humano necessita, além de contribuir positivamente para a redução do risco de desastres.
No desenvolvimento humano em sociedade, a urbanização é atividade imprescindível e fortemente impactante, dela decorrendo inúmeros benefícios:
a ocupação bem planejada e suportada por políticas adequadas de ordenamento do uso do solo é positivamente contributiva ao bom metabolismo das atividades urbanas nos seus mais variados aspectos - comércio, transporte, serviços, mobilidade, drenagem, viário, etc.
No entanto, prejuízos certamente se apresentam quando o vetor habitacional aponta para direções equivocadas: a ocupação das áreas periféricas e ínvias, além de produzir o risco que ceifa vidas, induz desmatamento, perda de hábitats, aumento na erosão e assoreamento de mananciais d’água, reduzindo sua capacidade tanto de armazenamento - e, portanto, de abastecimento público - quanto de veiculação de picos de vazão de chuvas intensas; daí decorrem as enchentes e inundações que levam à degradação da infraestrutura urbana e, novamente, à possibilidade de mais mortes. A cidade torna-se, portanto, imprópria e indesejável... ao viver, ao lazer, à segurança, à atração de investimentos. À sustentabilidade, portanto.
Para saber mais:
ALHEIROS, M. M. Gestão de Riscos Geológicos no Brasil. Revista Brasileira de Geologia de Engenharia e Ambiental, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 109-122, nov. 2011.
ALMEIDA, P. E. G. A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil: os desastres como problema político. In: Seminário Internacional de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, I. Porto Alegre, UFRGS, 2015.
BECK, Ulrich. World risk society and manufactured uncertainties. p. 291-299, 2009. Disponível em: <201201030948_IRIS_Vol1_No2_2009_1.pdf (academicpublishingplatforms.com)>
BRASIL. Ministério das Cidades / Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT). Mapeamento de riscos em encostas e margem de rios. Celso Santos Carvalho, Eduardo Soares de Macedo e Agostinho Tadashi Ogura (orgs.). Brasília: MC/IPT, 2007. 176p.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Séries históricas e estatísticas. Taxa de urbanização nacional (1940-2010). Brasília, 2010. Disponível em: <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=POP122>.
BRASIL. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC, e dá outras providências. Brasília (DF), 2012.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Diretoria de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2015. Belo Horizonte: FJP, 2018. 78 p. (Estatística & Informações, n. 6)
MACEDO, E. S. Desastres Naturais: causas e consequências. Geociências, Rio Claro, v. 27, n. 1, p. 137-139, 2008.
José Guilherme é Geólogo e Professor Doutor no Departamento de Ciências Ambientais da UNIFESP-Diadema.
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