Pintar para não surtar: os livros“infantis” salvam os adultos?
- Prof. Me. Everton Viesba
- há 4 dias
- 7 min de leitura
“Era uma vez um adulto cansado. Exausto, na verdade. Desses que trabalham muito, dormem mal e já esqueceram, sem culpa alguma, o que é um domingo. Um dia, sem querer, ele abriu um livro infantil. E chorou.”
Não são poucos os adultos que, nas brechas de um cotidiano apertado, descobrem consolo em livros feitos, originalmente, para crianças. Livros com ilustrações suaves, poucas palavras, moral da história “mastigada”. Livros que não gritam, não exigem produtividade, não tentam vender nada. Apenas contam histórias, abrem espaços para que você conte a sua ou então não tem história alguma, apenas traços, linhas e traçados para colorir.
Vivemos uma época em que o tempo não corre, ele nos atropela. A chamada geração Y, e as que a sucedem, cresceram entre promessas de liberdade e realidade de escassez: emocional, material, de vínculos. São adultos que aprenderam a usar planilhas antes de aprender a descansar. Que não podem desligar, porque o e-mail está no bolso, o WhatsApp é expediente e o lazer virou performance social. Como descreve Jonathan Crary em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (Ed. Ubu, 2016, 144 p.), o sistema atual não permite pausas... Tudo é fluxo contínuo, tudo é vigilância, tudo é monetizável.
Neste cenário, o que antes era simples, como ler um livro ou o jornal impresso numa manhã de sábado na varanda de casa, tornou-se ato de resistência. A leitura, para muitos, foi tragada pela lógica dos resumos rápidos, dos vídeos de 15 segundos, da rolagem infinita. Sério, até áudio e reels agora tem função de acelerar. Maryanne Wolf, especialista em neurociência da leitura, afirma que estamos perdendo a capacidade de ler profundamente, de contemplar ideias, de fazer pausas. Seu livro O Cérebro no mundo digital (Ed. Contexto, 2019, 256 p.) é um chamado à preservação de nossa humanidade diante da leitura superficial imposta pela hiperconectividade.
Eis um paradoxo que talvez você concorde comigo: quanto mais complexa a vida adulta, mais buscamos refúgios nos gestos mais simples. Entre reuniões, boletos e notificações, cresce a vontade de encontrar um lugar onde seja possível respirar, às vezes, nem que seja por algumas páginas. É nesse contexto que os livros “infantis” têm voltado às estantes de adultos cansados: como bálsamos silenciosos, como pequenos abrigos contra a brutalidade cotidiana. Mas por que, afinal, esses livros ainda nos tocam? Seria apenas nostalgia? Ou há algo mais profundo acontecendo? Ao que tudo indica, não é apenas o “voltar à infância”, mas a tentativa de reencontrar formas de presença, encantamento e escuta, coisas que fomos perdendo sem perceber. É nesse fio tênue, entre o lúdico e o essencial, que essa reflexão se desenha. Espero que goste da leitura.
Essa vida adulta, para a maioria de nós nascidos entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 2000, nunca foi um destino alcançado, foi uma engrenagem que nos engoliu. Crescemos entre promessas de futuro brilhante e crises econômicas sucessivas. Estudamos mais, trabalhamos mais, acumulamos funções e, ainda assim, tudo parece pouco, insuficiente, frágil. O preço dessa sobrevivência multifacetada tem se revelado em forma de ansiedade crônica, distúrbios de sono, crises de identidade e, cada vez mais, diagnósticos como burnout. Cito esse termo porque, até então, era restrito ao jargão médico, já hoje circula nas redes como um meme melancólico. Como afirma Byung-Chul Han em A sociedade do cansaço (Ed. Vozes, 2015, 136 p.), vivemos sob o regime da auto exploração, somos patrões e empregados de nós mesmos, exaustos por dentro e performáticos por fora.
A promessa de “liberdade” dos tempos digitais revelou-se uma nova prisão. A internet que deveria libertar, conecta sem cessar. O trabalho remoto que deveria flexibilizar, coloniza os espaços domésticos. E as múltiplas telas, que deveriam entreter, transformam-se em fontes constantes de comparação, cobrança e hiperestimulação. A socióloga Eva Illouz aponta que o amor, o trabalho e até o lazer se transformaram em mercadorias emocionalmente exaustivas. Em O amor nos tempos do capitalismo (Ed. Zahar, 2011, 188 p.), Eva observa como a lógica mercadológica se infiltrou nas experiências mais íntimas, tornando a vida afetiva precária e ansiosa. Nesse turbilhão, o tempo se fragmenta. Não há mais horas “vazias”, nem tardes sem notificações, nem domingos ociosos. O tempo livre, quando existe, é culpado. E o descanso, antes sagrado, agora precisa ser justificado: como autocuidado, como investimento em saúde, como performance zen para o Instagram. A vida adulta virou uma sequência de janelas abertas, como um navegador sobrecarregado prestes a travar.
É nesse cenário que surge também o desejo de parar, de desacelerar, de respirar. Mas o problema é que muitos de nós já esquecemos como se faz isso. Eu, por exemplo, sofri para assistir um stand-up comedy nos últimos dias. Me pareceu sufocante ficar 90 minutos sentado sem poder me mexer. E eu adoro isso, mas meu corpo perdeu o hábito, para as pernas e braços só faz sentido ficar sentado se for para trabalhar em frente ao notebook. Enfim, fugindo do storytelling, pego esse gancho para uma virada curiosa: o que a psiquiatria trata com ansiolíticos, o capitalismo responde com alternativas "calmantes" como livros de colorir para adultos, vídeos ASMR (vídeos que estimulam uma Resposta Meridional Sensorial Autônoma), terapias manuais, jardinagem e, cada vez mais, o retorno a narrativas simples e reconfortantes. Não é fuga. É sobrevivência simbólica.
Em 2015, o fenômeno global do livro de colorir Jardim Secreto (Ed. Sextante, 2016, 96 p.) da ilustradora Johanna Basford, vendeu mais de 20 milhões de cópias no mundo. Não era um sucesso infantil. Era um êxito entre adultos esgotados, em busca de concentração, silêncio e beleza. A prática de “colorir para adultos” foi vendida como meditação gráfica. E, de certo modo, é. Trata-se de um gesto manual que exige pausa, atenção plena, ausência de distrações. O lápis deslizando no papel se opõe ao dedo frenético deslizando na tela. Esse gesto aparentemente banal, pintar dentro dos contornos, carrega um simbolismo: delimitar, escolher cores, recompor sentido. É uma forma de restaurar a presença, que como alerta o filósofo Christian Dunker, está desaparecendo da vida social. Em seu livro Reinvenção da Intimidade (Ed. Ubu, 2017, 320 p.), Dunker propõe que vivemos um tempo de relações líquidas, mas também de afetos ausentes: as pessoas estão perto, mas desconectadas de si. Livros, desenhos e histórias simples podem ser ferramentas de reconexão íntima com o outro e com o próprio eu que foi se dissolvendo na pressa.
O retorno aos livros infantis insere-se nesse mesmo movimento: a busca por narrativas que não exigem performar, mas sentir. São livros que não pressupõem leitura estratégica, nem produtividade intelectual. Pelo contrário: convidam à lentidão. A nova febre editorial Bobbie Goods (Ed. HarperCollins, 2025, 48 p.), da ilustradora americana Abbie Goveia, por exemplo, apresenta personagens carismáticos, como a cachorrinha Momo e o urso Pierre, em cenários acolhedores que evocam conforto e nostalgia. Diferentemente da onda anterior, marcada por mandalas complexas, os livros atuais adotam traços mais simples e acessíveis, atraindo adultos, adolescentes e jovens da Geração Z. Paradoxalmente, tendência esta que foi amplificada pelo TikTok.
Algo um pouco mais elaborado pode ser encontrado nas obras de Shel Silverstein, ao folhear A parte que falta (Ed. Companhia das Letrinhas, 2018, 112 p.) ou a A árvore generosa (Idem, 2017, 64 p.), somos confrontados por metáforas de entrega, abandono, incompletude e reencontro — tudo com meia dúzia de palavras por página. São livros que dizem mais com menos. E que, talvez por isso, nos tocam mais profundamente agora, quando tudo parece excessivo.
Enquanto editor, e analisando os cenários e tendências do mercado livreiro, entendo que, no fundo, essa busca não é por divertimento, beleza ou distração. É por abrigo. Claro, há casos e casos, mas mais do que um modismo, o retorno a esses livros revela uma lacuna emocional não resolvida: a falta de narrativas que acolham sem exigir, que escutem sem julgar, que curem sem prometer cura. Em um mundo saturado de informações e vazio de sentido, as histórias curtas e doces voltam a cumprir um papel ancestral: contar para cuidar. E isso, para um adulto cansado, pode ser o começo da cura. Em um tempo que valoriza a pressa, o excesso e o ruído, escolher parar para ler um livro infantil ou simplesmente colorir uma imagem em silêncio é quase um gesto revolucionário. É se recusar, ainda que por poucos minutos, a continuar rodando na engrenagem que exige mais, mais e mais. É dizer: “eu não sou só produção”. É reafirmar, mesmo que sussurrando, que a delicadeza ainda importa.
Pintar dentro do contorno, para muitos, pode parecer uma tarefa menor. Mas para quem passou o dia inteiro apagando incêndios — emocionais, profissionais, domésticos —, pode ser o primeiro gesto de cuidado com os próprios limites. Ler uma história curta, feita para crianças, pode parecer simplório. Mas para quem já se esqueceu como é ser lido, como é ser escutado, pode ser um reencontro com a própria humanidade. E isso, em um mundo onde até o autocuidado virou performance, é profundamente político.
É curioso e revelador que tantos adultos estejam redescobrindo, entre livros infantis, algo que a vida adulta insiste em apagar: o direito de sentir sem explicação, de descansar sem culpa, de imaginar sem utilidade. A psicanalista Vera Iaconelli costuma dizer que “o cuidado não é luxo — é fundamento”. Talvez seja isso o que os livros “infantis” estejam nos ensinando de novo: a sermos cuidadosos com o tempo, com a linguagem, com os afetos. A desacelerar não para ser mais eficientes depois, mas para sermos inteiros agora. Porque sem esse gesto de reencontro, a vida adulta vira apenas uma sucessão de obrigações sem alma.
Voltar a ler livros infantis ou colorir uma página em silêncio é, sim, uma forma de desestressar. Mas é também uma forma de se reconstruir. E, quem sabe, de reconstruir o mundo ao nosso redor com outras cores, outros ritmos, outras palavras.
Inspirado nesse movimento e no desejo de criar um espaço acessível de acolhimento, estou tendo o privilégio de acompanhar a edição e produção do livro Silêncio! Estou pintando meu stress (Ed. V&V, 2025, 60 p.), uma proposta que convida à desaceleração por meio da arte e da palavra, cruzando páginas ilustradas e reflexões sobre o cotidiano que nos atravessa. Com lançamento previsto para julho de 2025, durante o recesso escolar e universitário, a obra entra em pré-venda como um companheiro possível para os dias de pausa (adquira em: vveditora.com). Pensado para educadores, estudantes e adultos que buscam um ponto de equilíbrio entre o descanso e o cuidado, o livro propõe uma experiência híbrida: não apenas colorir, mas escutar o silêncio entre os traços, deixar o cansaço escoar pelas linhas e permitir que as férias — tão frequentemente capturadas por tarefas pendentes — sejam também um território de reencantamento. Porque às vezes, parar e colorir é tudo o que precisamos para não nos perder completamente.
E, assim, um adulto se lembrou de como era bom ouvir uma história. Pintar um livro. Traçar um desenho de colina sobre o papel. E, por alguns minutos, ele descansou dentro do livro.
Muito bom ,sou uma dessas pessoas .
Q só trabalho ,e esqueço das pequenas coisas q faz tão bem.
Ler um livro infantil ê voltar a infância.