Os fios invisíveis das relações: os “dramas” da adolescência, a indiferença social e o afeto na humanidade
- Prof. Me. Everton Viesba
- 29 de mar.
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de abr.
Olá, caro leitor e querida leitora. Você, assim como eu, passou pela fase da adolescência e, ainda hoje, em alguma medida, lida com adolescentes e “seus dramas” cotidianos. Naturalmente, não era drama na minha época, tampouco na sua e não é nas gerações atuais. Mas tendemos a diminuir ou categorizar alguns comportamentos das gerações como forma de torná-los um não-problema. Sendo drama, torna-se algo que não precisamos discutir. Certo? Errado!
A adolescência é uma fase marcada por transformações intensas, onde buscamos afirmar nossa identidade e encontrar um lugar no mundo. Foi assim comigo, com você e é com todo mundo. Seja a realidade individual cheia de nuances ou multifacetada, a adolescência tem suas complexidades tal qual a vida adulta. Neste artigo, discuto este tema devido à explosão da nova série da Netflix, Adolescência, no estilo minissérie e de origem britânica, a obra lança um olhar profundo sobre essa etapa da vida ao narrar a história de Jamie Miller, um garoto de 13 anos acusado de assassinar uma colega de escola. Criada por Stephen Graham, que também interpreta o pai de Jamie, Eddie Miller, a série explora as relações familiares e sociais diante de uma tragédia, ressaltando como a indiferença social pode agravar os desafios enfrentados pelos adolescentes – e por que não também pelos adultos? Logo voltaremos neste ponto.
Desde o início, a minissérie nos confronta com a brutalidade de um crime, até então supostamente, cometido por um jovem, levando-nos a questionar os fatores que podem ter contribuído para tal ato. De cara, fica a sensação e desejo de que o Jamie fosse inocente e alguma trama pudesse se desenrolar. Errado. O fio segue sombrio.
As investigações revelam que Jamie foi vítima de bullying e influenciado por subculturas virtuais misóginas, conhecidas como incel do inglês involuntary celibates (celibatários involuntários), que basicamente propagam ódio contra mulheres. Essa realidade fictícia reflete preocupações atuais sobre a radicalização de jovens em comunidades virtuais, onde a falta de orientação e apoio pode levar a comportamentos destrutivos.
Se já assistiu a minissérie, há de concordar que a atuação de Owen Cooper como Jamie é comovente, transmitindo a vulnerabilidade e a confusão de um adolescente perdido entre as pressões externas e suas próprias inseguranças. Stephen Graham, conhecido por seus papéis intensos, entrega uma performance sensível como Eddie, um pai que luta para entender e apoiar seu filho em meio ao caos. A dinâmica entre pai e filho é central na narrativa, evidenciando como os laços familiares podem ser tanto uma fonte de conforto quanto de conflito.
Enquanto a mídia e a sociedade rapidamente constroem o julgamento sobre o jovem, a minissérie nos convida a olhar para além da superfície e refletir sobre as estruturas invisíveis que moldam as relações humanas. Em um mundo onde o afeto muitas vezes é negligenciado, Adolescência nos faz questionar: até que ponto a indiferença social contribui para as tragédias individuais?
O filósofo Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida (Zahar, 2021, 280 p.), argumenta que as relações humanas se tornaram frágeis e efêmeras, dissolvendo-se com a mesma rapidez com que são formadas. Jamie é um exemplo desse fenômeno - um jovem invisibilizado em sua própria existência, sem vínculos sólidos que o sustentem emocionalmente. Seu isolamento e sua vulnerabilidade refletem um problema maior, que ultrapassa sua história individual e se inscreve em um modelo social que valoriza a performance e a imagem mais do que o vínculo afetivo.
Nos episódios que seguem, também percebemos o papel das instituições, com destaque para a escola e a polícia. A investigação conduzida pelo detetive Luke Bascombe, interpretado por Ashley Walters, revela as falhas de um sistema que muitas vezes não consegue proteger ou compreender as pessoas, neste caso, um adolescente. A psicóloga Briony Ariston, vivida por Erin Doherty, tenta desvendar a mente de Jamie, mas enfrenta barreiras erguidas por traumas e influências negativas. Essa ausência de acolhimento na trajetória do personagem, ressoa com as discussões de Honneth, em Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (Ed. 34, 2009, 296 p.), sobre a importância do reconhecimento social na construção da identidade. Quando um indivíduo não é validado emocionalmente por sua família, escola ou comunidade, ele corre o risco de perder a conexão com sua própria humanidade. Adolescência me levou a crer que a falta desse reconhecimento empurra muitos jovens para territórios de extrema solidão, onde ideologias destrutivas, como o movimento incel, encontram terreno fértil.
Essa indiferença da sociedade diante do “drama” vivido pelas pessoas, sobretudo pelos adolescentes, não se restringe ao ambiente familiar. A escola, se destacando como espaço de socialização, no reflexo da sociedade moderna, também pode se tornar um lugar de exclusão e sofrimento. Bourdieu e Passeron, em A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (Vozes, 2014, 280 p.), argumentam que as escolas e universidades tendem a perpetuar desigualdades ao invés de reduzi-las. No caso de Jamie, a escola não foi um refúgio, mas um ambiente onde ele se tornou alvo de bullying e isolamento. Sem professores ou colegas que percebessem seus sinais de angústia, sua trajetória seguiu um caminho que talvez pudesse ter sido evitado se houvesse um olhar mais atento e empático ao seu redor. Sim, sei que é pesado ler isso. Enquanto professor foi difícil tornar tangível esse pensamento nesta minha análise.
O papel da imprensa na amplificação desta indiferença também é um ponto crítico na narrativa da Netflix. Em A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord (Ed. Contraponto, 2007, 238 p.) considera que vivemos em um mundo onde os eventos são transformados em mercadoria e consumo. A cobertura sensacionalista do crime cometido por Jamie reforça esse diagnóstico - em vez de buscar compreender os fatores que levaram ao ocorrido, a mídia rapidamente o enquadra como um monstro, ignorando as complexas questões sociais envolvidas. Essa abordagem superficial perpetua os julgamentos apressados, estimulando, por exemplo, que a sociedade também rechace a família do Jamie, além de estimular a sua desumanização.
A minissérie não se esquiva de temas difíceis, como a violência juvenil, a influência perniciosa das redes sociais e a fragilidade das relações humanas. Ela nos incentiva a refletir sobre nossa responsabilidade coletiva na formação dos jovens e na construção de uma sociedade mais empática e atenta às necessidades emocionais dos seus principais sujeitos – as pessoas.
Resolvi escrever esta breve análise porque, enquanto pessoa, pesquisador e professor, tenho me preocupado sobre a falta de afeto nas relações. Olhar para uma pessoa em situação de rua ou para uma familiar viciada e não se sentir triste, decepcionado e frustrado com a sociedade pelo seu nítido fracasso, me parece um declínio para a humanidade. A sociedade capitalista nos força a conviver com esse tipo de coisa e nos prepara para ignorá-las, como sendo algo comum, portanto, fora de controle. Mas se olharmos para obras como as de Paulo Freire, quando reflete em Pedagogia do Oprimido (Ed. Paz & Terra, 2009, 256 p.) que se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor, percebemos que há esperança na Educação. E aqui me refiro ao termo em sua concepção mais ampla, para além das salas de aula, me refiro a Educação como processo social.
Diante dessa indiferença social como a vivida por Jamie, me pergunto o que pode ser feito para resgatar o afeto nas relações humanas? Começando pela escola, ainda em Paulo Freire, recorri à Pedagogia da Autonomia (Paz & Terra, 2009, 144 p.) onde propõe uma Educação que valorize o diálogo e a afetividade, reconhecendo que os estudantes são seres humanos integrais. Em Adolescência, vemos como a falta desse olhar humanizado dentro da escola pode contribuir para o desamparo de jovens em situação de vulnerabilidade emocional. A obra também nos lembra que o afeto ultrapassa a concepção de sentimento e se torna uma força ativa capaz de transformar realidades.
Martin Buber, em Eu e Tu, (Ed. Centauro, 1974, 152 p.), argumenta que a verdadeira existência só acontece no encontro autêntico entre as pessoas. Hannah Arendt, em A Condição Humana, (Ed. Forense Universitária, 2016, 474 p.) sugere que a única forma de romper com ciclos de desumanidade na sociedade moderna é pela ação consciente e pela responsabilidade coletiva.
Adolescência nos lembra que, por trás de cada manchete sensacionalista, por trás de cada queixa por ausência entre amizades, reclamações por distanciamento, por trás de cada detração criada, há um ser humano cuja história precisa ser ouvida.
No desfecho da minissérie, Eddie, antes um pai que achava fazer o suficiente, percebe que sua conexão com Jamie deveria ter sido construída muito antes da tragédia. O remorso evidencia um aprendizado doloroso: a importância de estar presente antes que seja tarde demais. Como Richard Sennett sugere em Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação, (Ed. Record, 2019, digital) a qualidade das relações humanas é definida para além da empatia e solidariedade, o afeto se constitui, entre outras conexões, pelo esforço ativo de cultivar laços e entender as complexidades da convivência com o outro.
Os fios invisíveis das relações humanas, tão evidentes na trama de Adolescência, são também os fios que tecem nossa própria história. Em um mundo que insiste na indiferença, no individualismo e na competição, é o afeto que nos salva, nos resgata e nos lembra de que, no fim, a única certeza que temos é que precisamos uns dos outros para existir.
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