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O desafio de Francisco e nosso: reconstruir as redes e os pilares que nos sustentam

Se você não viveu durante o período da Primeira (1914- 1918), Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ou o período da Guerra Fria (1945-1991), certamente estudou, leu ou assistiu e observou o tamanho do potencial de destruição do ser humano com as centenas de milhares de mortes e cidades inteiras devastadas pelo ambiente hostil das guerras. Contudo, essas grandes guerras do século XX destruíram muito mais do que cidades e nações, abalaram a confiança na ideia de humanidade, dilaceraram projetos de futuro e revelaram o abismo entre civilização e barbárie. Eric Hobsbawm relata na “Era dos extremos” (Ed. Companhia das Letras, 1995, 632 p.) que a Primeira Guerra rompeu o ideal de que a razão e a ciência nos levariam a um futuro harmônico; a Segunda, com o horror do Holocausto e a explosão da bomba atômica, revelou o quanto o ser humano podia se tornar uma máquina de extermínio. Já a Guerra Fria, travada entre ideologias e silêncios, deixou cicatrizes profundas e invisíveis e ajudou a forjar as potências mundiais que hoje se ameaçam constantemente, deixando pairar a sensação de que a paz é sempre provisória.


Todavia, naqueles períodos de grandes guerras, mesmo diante da tragédia, ainda havia a ideia de reconstrução. Maria Montessori nos leva a refletir em seu livro “A Educação e a paz” (Ed. Papirus, 2014, 188 p.) que nos países devastados por conflitos comunidades, escolas e projetos coletivos se mobilizaram para reerguer o que havia sido arruinado. Sindicatos, centros culturais, movimentos sociais, bibliotecas populares são espaços que surgiram como abrigo e resposta – mesmo hoje, em enchentes e terremotos, vemos isso acontecer. Existia, ainda que fraturada, a crença de que um mundo novo podia ser reconstruído juntos.


No século XXI, no entanto, o cenário é outro. As guerras continuam, mas são mais difíceis de localizar. Estão nos campos do Oriente Médio, nos paredões da Faixa de Gaza, nos corredores lotados dos hospitais e nos aplicativos de entrega. São guerras de lógica difusa, fragmentada, de origem econômica, ambiental e tecnológica. O inimigo é invisível e os sobreviventes muitas vezes seguem vivendo sem saber exatamente do que escaparam. Esses combates travados no Oriente Médio, as crises humanitárias provocadas pelas mudanças climáticas, os embates entre Rússia e Ucrânia ou os massacres recorrentes na Faixa de Gaza não são apenas conflitos localizados — são sintomas de um colapso global de valores e sentidos.


Na “Sociedade do cansaço” (Ed. Vozes, 2015, 136 p.), como já apresentei em outros artigos desta coluna, Byung-Chul Han expõe que enfrentamos crises simultâneas que parecem nos imobilizar: colapsos climáticos, desigualdades extremas, retrocessos democráticos, fome em países ricos, depressão entre crianças, e uma aceleração do tempo que nos esgota. É como se estivéssemos dentro de uma casa pegando fogo, discutindo a decoração.


Paralelo às guerras explícitas em lugares longínquos, há uma guerra difusa e cotidiana que se trava nos afetos, nos corpos e nas relações. A emergência climática, o avanço da fome em meio à abundância, o colapso das instituições democráticas, o adoecimento mental de adolescentes e a dissolução de vínculos comunitários desenham um cenário que não é apenas trágico — é desumanizante. Como alertou o Papa Francisco em “Laudato Si” (Ed. Loyola, 2015, 144 p.), a degradação ambiental e a degradação humana e ética estão intimamente ligadas. Percebemos que a ciência passou a ser desacreditada por correntes negacionistas. E a educação foi empurrada para rankings, provas e metas, estimulando a perda de seu caráter transformador.


Há um esgarçamento profundo dos vínculos. Um mal-estar que não encontra nome, uma sensação de estar à deriva, mesmo cercado de vozes, telas e tecnologias. Boaventura de Sousa Santos chama isso de “interregno”: um tempo de transição em que o mundo moldado pelo neoliberalismo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, começou a ruir com a crise financeira de 2008 e desde então, ainda não está claro qual será a nova ordem que surgirá em seu lugar. Nesta perspectiva, o sociólogo Zygmunt Bauman descreve em “Modernidade líquida” (Ed. Zahar, 2021, 280 p.) o tempo vivido como sendo de uma liquidez corrosiva. Tudo escorre, tudo se desfaz. Relações, valores, instituições. Nessa fluidez, perdemos o chão comum. Os laços comunitários se tornam frágeis. A amizade vira conexão, a dor vira postagem. O outro, quando muito, é um avatar “.


Nesta modernidade líquida de Bauman, em vez de solidariedade, desenvolvemos competências emocionais. Em vez de redes de apoio, colecionamos seguidores. A cultura da cura, quando despolitizada, apenas reforça a ideia de que cada um deve dar conta de si — e que quem não dá, falhou. As pessoas se olham entre si sob discussão e conflitos, naturais da relação humana e que permeiam a concepção de diálogo, e dizem “não sou obrigada a passar por isso”, nesse contexto, o sofrimento do outro é visto sem empatia, considerado como fraqueza ou inconveniente. É nesse mundo, fraturado e desconectado, que Francisco se levantou como uma das vozes mais humanas de nosso tempo. Não porque trouxe soluções prontas, porque não trouxe, mas porque ousou propor um caminho contra a corrente: o da ternura, do cuidado e do compromisso com o comum. Um caminho que, para muitos, parece ingênuo. Mas talvez seja, justamente por isso, radical.


Paulo Freire, no escopo de suas obras, fez algo semelhante: ensinou-nos a natureza do diálogo e a aprender a ouvir as opiniões divergentes das nossas. A argumentação e a retórica são partes essenciais do diálogo, o pensamento divergente, longe de ser um obstáculo, faz parte do próprio processo de conscientização e emancipação.


Desde “Laudato Si”, o Papa Francisco vem insistindo na ideia de que tudo está interligado. Não há crise ambiental sem crise social. Não há destruição do planeta sem destruição das relações humanas. Não há salvação individual quando o outro está afundando – ninguém se salva sozinho. O planeta, diz ele, grita por socorro. E nós, como humanidade, já não escutamos. Em sua encíclica “Fratelli Tutti” (Ed. Loyola, 2020, 144 p.) nos tece um grito contra a indiferença e a desigualdade: O individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer, afirmou o Papa, ao chamar o mundo à responsabilidade com o outro.


O desafio que Francisco apontou durante seu papado e que nos interpela como sociedade é urgente e profundo: como reconstruir os laços que nos sustentam? Como recuperar a ética do cuidado, a educação do vínculo, a política da solidariedade? Como lembrar que o mundo só faz sentido quando vivido com e pelo outro?


Para além da fé católica e cristã, para além de toda espiritualidade, os ensinamentos de Francisco não são novos, mas releituras de pesquisadores, professores, padres, pastores e teóricos que há algum tempo gritam em seus espaços sobre a necessidade de sobrevivência do ser humano, de reconexão. O Papa apenas nomeia o que muitos já sentem: que precisamos, com urgência, tecer de novo o tecido do comum. E para isso, será preciso reaprender a olhar, escutar e cuidar. Coletivamente. Embora não traga a solução, Francisco nos deixa algumas respostas, entre elas, propõe que a cultura do cuidado seja um caminho. Mas não o cuidado neoliberalizado, higienizado, transformado em produto; e sim o cuidado como compromisso radical com a vida em todas as suas dimensões e formas — humana, animal, ambiental, espiritual e social. Uma “ecologia integral”, como ele define, que não separa o grito da Terra do grito dos pobres. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” (Ed. Companhia das Letras, 2020104 p.) Ailton Krenak expõe que não é o planeta que precisa ser salvo, mas nós que precisamos reaprender a viver com ele, reaprender a viver em coletivo.


Franscisco nos grita e nos move para lutar contra a falência das redes de solidariedade e colaboração. Aquilo que sustentava as comunidades, a vizinhança, a escola, o posto de saúde, a igreja, a associação de bairro foi, com o passar dos anos, das guerras e das crises, sendo desmontado ou deslegitimado. Em muitos territórios, o único Estado presente é o da polícia. E a única política possível é a da sobrevivência. Nesse mar, surge a boia do autocuidado. O conceito é legítimo, e necessário, especialmente para corpos historicamente violentados, como bem nos ensina Conceição Evaristo, em suas obras, o cuidar de si não é autoindulgência, é autopreservação. E isso está perfeitamente correto, todavia, o sistema neoliberal se apropria dos conceitos e nesta apropriação esvazia seu potencial coletivo.


Transformado em indústria, o autocuidado virou mais só mais um produto. Aplicativos de meditação, suplementos milagrosos, dietas, rotinas estéticas, retiros espirituais a preços inacessíveis. O cuidado com o corpo e a mente se tornou obrigação moral. Quem não consegue, sente-se fracassado. Quem sofre, sente- -se culpado. Pior: o autocuidado, quando isolado de um projeto comunitário, vira desculpa para a indiferença. Quantas vezes ouvimos frases como “não posso me envolver com isso agora, estou focando em mim”? É preciso cuidado para que a fronteira entre a proteção e o egoísmo não se dissolva a ponto de nos tornarmos ilhas cercadas de espelhos. Francisco nos convida a romper com esse espelhamento. Ele propõe o “cuidar de si” como parte de um projeto maior: cuidar do outro, da Terra, do futuro. Seu chamado não é apenas espiritual, mas profundamente político. Ele pede que religuemos os fios: da fé com a ciência, da ética com a prática, do eu com o nós.


Embora não traga soluções ao mundo, Francisco nos deixa uma bússola que aponta para o reencontro com aquilo que sustenta a vida. Não há saída individual para um problema coletivo. A crise não é só ambiental, mas relacional. Por isso, a reconstrução das redes e dos pilares que nos sustentam começa no gesto mais simples: escutar. Escutar o planeta, escutar o aluno, escutar o vizinho, escutar o próprio corpo - não para se fechar, mas para se abrir ao outro. Como escreve bell hooks em “Tudo sobre o amor” (Ed. Elefante, 2021, 272 p.), a escuta é uma arte revolucionária. Todavia, caminhar nessa direção exige coragem. Exige reaprender a perguntar: quem está ao meu lado? Quem ficou para trás? Quem nunca foi ouvido? É isso que transforma o cuidado em política. É isso que transforma a fé em ação. É isso que transforma a educação em futuro.


E se ainda há tempo — e acredito eu que talvez haja — ele será feito de encontros. De redes que se refazem. De mãos que se estendem. De vínculos que se costuram novamente, com paciência, com verdade e com amor. O desafio de Francisco é nosso. A travessia, também.


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