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Confetes, cinzas, águas de março e o recomeço

Entre a festa, a ressaca e o misto de emoções, março vira a página e finalmente dá início ao ano.


Olá, caro leitor e querida leitora. Como você passou o Carnaval? Seja aproveitando um bloquinho, assistindo aos desfiles, adiantando as tarefas do ano ou descansando, certamente você “pagará o preço” dos confetes e purpurina que se espalharam pelas ruas das cidades. Eu que não participei de bloquinho, estou com a casa e escritório tomados de purpurina...


Falo dos confetes e purpurinas porque há algo de melancólico nos dias que seguem o Carnaval. O sol ainda brilha forte como saldo do verão, mas já não tem o mesmo tom vibrante das semanas anteriores. As ruas, antes tomadas por multidões em êxtase, agora são lavadas pelas águas de março, como se as cidades estivessem se despedindo da festa, varrendo os últimos vestígios de confete e purpurina.


Fico pensando em como essa transição reflete tanto daquilo que sentimos: a intensidade de um momento que parece eterno e, de repente, escorre pelos dedos, deixando apenas ecos, lembranças e uma leve ressaca – às vezes do corpo, às vezes da alma.


Sempre me fascinou essa dualidade do Carnaval. Ele é, ao mesmo tempo, libertação e ilusão. Nele, vivemos intensamente, nos entregamos ao agora sem pensar no depois. Mas o depois sempre chega. E é nesse intervalo, entre o fim da festa e o começo do cotidiano, que resgatamos nossas verdades. O que foi real? O que era passageiro? O que vale a pena levar adiante? Porque, entre a festa, a ressaca e o misto de emoções, março vira a página e finalmente dá início ao ano e nos lembra que, mesmo quando tudo parece terminar, há sempre um novo começo esperando para ser escrito. E isso representa bem a cultura brasileira – sempre um povo de esperança!


Historicamente, março carrega um punhado de águas e significados. A tempestade que lava o confete das ruas parece querer nos lembrar que tudo passa, que a euforia tem seu tempo e que o silêncio que vem depois da festa também precisa ser ouvido. Esse mergulho nas emoções intensas do Carnaval, seja o mais puro sentimento de folga de quem foge para o interior atrás de refúgio, seja a adrenalina e euforia dos foliões, é vivido sem preocupações com o depois. Mas o depois sempre chega. E quando chega, o que fica?


As grandes narrativas da literatura estão repletas desse dilema: o que permanece depois que a cortina se fecha? Em Cem Anos de Solidão (Ed. Record, 1977, 448 p.), Gabriel García Márquez nos mostra que algumas histórias se repetem em ciclos, como se estivéssemos condenados a reviver as mesmas paixões, os mesmos erros, os mesmos arrependimentos. O fim do verão, assim como o final de um grande romance, nos obriga a olhar para trás e entender o que de fato foi real e o que foi apenas ilusão passageira.


Saber lidar com a frustração é uma habilidade tão essencial quanto saber viver intensamente. É preciso entender que nossas amizades não estão ali, disponíveis o tempo todo. Da mesma forma, pode ser que não lavar a louça ultrapasse a barreira da falta de habilidade para a decisão de não querer lavar, e tudo bem, né? Não sei. Em qualquer contexto e cenário, lidar com a frustração é sempre muito difícil, pois, na maioria das vezes, a frustração se origina em uma expectativa, um desejo criado, que também na maioria das vezes, depende de algo ou alguém além de nós mesmos. E não dá para contar com o ovo que a galinha ainda não botou...


Muitas vezes, apostamos tudo em um momento, em uma promessa, em um laço que julgávamos inquebrável – e, no entanto, a vida segue outro rumo. Como nos ensina O Grande Gatsby (Ed. Principis, 2020, 176 p.), de Scott Fitzgerald, nem sempre o amor, a amizade ou os sonhos que cultivamos resistem ao tempo. Mas isso não significa que tenham sido em vão. Algumas experiências têm valor não porque são eternas, mas porque existiram.


A literatura e a vida nos ensinam que nem tudo o que reluz é ouro. O Carnaval, com sua explosão de cores e sentimentos, é um reflexo disso. É fácil se perder na intensidade do momento, acreditar que tudo o que se sente ali é absoluto. Mas parte do amadurecimento emocional passa por aprender a interpretar o que sentimos. Em As Pequenas Virtudes (Ed. Companhia das Letras, 2020, 128 p.), Natalia Ginzburg nos lembra que a verdadeira sabedoria não está em evitar as emoções intensas, mas em compreendê-las com clareza e honestidade. Naturalmente, isso também vale para as relações humanas. Nem todas as conexões criadas no auge de uma festa resistem ao passar dos dias. Algumas amizades e amores são construídos na areia da praia e se desfazem com a maré. Outras, porém, permanecem como rochas, firmes mesmo quando a tempestade passa. Saber diferenciar esses vínculos, entender quais são passageiros e quais são verdadeiros, é uma das maiores lições que podemos aprender.


Em A Amiga Genial (Ed. Biblioteca Azul, 2015, 336 p.), de Elena Ferrante, acompanhamos a complexidade de uma relação que resiste ao tempo, mesmo que cheia de conflitos, afastamentos e reencontros. Ferrante nos ensina que as relações verdadeiras não são feitas apenas de momentos bons, mas também da disposição de enfrentar a verdade, de aceitar a imperfeição do outro e de crescer juntos. O Carnaval, com suas efemeridades, contrasta com esse tipo de relação: aquelas que resistem ao teste do tempo não se desfazem no primeiro vento forte. Interpretar sentimentos é um exercício de autoconhecimento e de respeito pelo outro. Em Em Busca do Tempo Perdido (Ed. Nova Fronteira, 2017, 472 p.), Marcel Proust nos ensina que a memória afetiva é uma armadilha poderosa, capaz de nos fazer sentir nostalgia por coisas que nunca foram exatamente como lembramos. Quantas vezes nos apegamos a um sentimento apenas porque queremos que ele seja real, e não por que ele realmente é?


O pós-Carnaval também nos obriga a lidar com a solidão. Depois da multidão, do riso coletivo, da dança compartilhada, sobra um espaço vazio que pode ser incômodo. Mas, como Virginia Woolf escreveu em Um Quarto Só Seu (Ed. L&PM, 2019, 160 p.), estar só também pode ser um privilégio. A solitude não precisa ser sinônimo de ausência, mas de reencontro consigo mesmo. Nem todas as respostas estão na euforia – muitas vezes, são os momentos de silêncio que nos permitem entender o que realmente sentimos.


As relações verdadeiras, assim como os melhores livros, são aquelas que nos transformam. O respeito ao outro e à própria história são essenciais para que os laços sejam profundos e duradouros. Em Os Irmãos Karamázov (Ed. Editora 34, 2019, 888 p.) Dostoiévski nos apresenta relações intensas, permeadas por dilemas morais e questionamentos sobre o que realmente significa estar presente para alguém. No fim, não são as promessas feitas no dia a dia ou nos dias de festa que definem a força de uma relação, mas a presença nos momentos difíceis. Eu, pessoalmente, costumo adotar esta reflexão em minhas relações. 


Há algo de profundamente literário na ideia de ciclos. No teatro de Shakespeare, o destino dos personagens está sempre ligado às estações do ano – o verão traz paixão, o outono traz reflexão, o inverno traz provações e a primavera traz renascimento. Março é o nosso outono simbólico: um convite para revisitar as escolhas feitas sob o calor do verão e preparar o terreno para novos recomeços. Se no Brasil o ano só começa após o Carnaval, então este é o melhor momento para recomeçar, rever os planos e desenvolver novos, e, claro, com certa celeridade que a vida cotidiana exige, afinal, já se passaram quase três meses de um ano com doze.


Se o Carnaval nos deu a ilusão de que o tempo pode ser suspenso, março nos traz de volta à realidade. Os e-mails, mensagens, contas pendentes, planos anuais e trabalho já não esperam mais. É preciso correr. E há certa beleza nisso. Nem tudo precisa ser uma festa sem fim para ser significativo. Às vezes, o que mais importa não é a intensidade de um momento, mas a forma como ele nos transforma. Como Clarice Lispector nos lembra em Perto do Coração Selvagem (Ed. Rocco, 2018, 208 p.), a vida não é sobre buscar o extraordinário o tempo todo, mas sobre perceber a grandiosidade do que é simples.


As águas que lavam as ruas são as mesmas que regam as raízes das árvores. O que parece um fim pode ser apenas um começo disfarçado. Cada despedida carrega em si a semente de um novo encontro, e cada história que termina abre espaço para outra ser contada. A literatura e a vida são feitas desses ciclos, e aprender a aceitá-los é o que nos permite seguir em frente. Encerro este Carnaval sem folia, sem bloquinhos, nem refúgio, mas com confetes e purpurinas que agora são lavados pelas águas de março. E se este mês nos ensina algo, é que tudo tem seu tempo. A alegria e a melancolia, a euforia e a calma, a chegada e a partida.


Talvez a maior lição das águas que fecham o verão seja essa: deixar ir o que precisa ir, mas carregar consigo o que realmente importa. E se há um lugar onde todas essas sensações podem ser revisitadas, é nos livros. Porque, no fim, as palavras são como as marés – vão e vêm, mas sempre deixam algo em nós.




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