Você acordou nesta manhã de sábado, tomou seu café forte, pingado ou suco, folheou ou arrastou os dedos para ler este jornal. Enquanto iniciou a rotina do dia, te pergunto: — deu tempo de falar mal do vizinho que ficou com som alto na noite de sexta-feira, atrapalhando seu suave sono, ou então, de reclamar e maldisseres a colega “chata” que perturbou sua semana no trabalho?
Pode admitir baixinho, apenas para si, se não fez isso nas primeiras horas do dia, provavelmente fará nas horas seguintes. Em alguma medida, a tendência humana de falar mal do outro se relaciona diretamente com a necessidade primitiva de sobrevivência. Essa atitude, diga-se por, ora “natural”, atravessa diferentes dimensões, entre elas psicológicas, sociais e evolutivas. Talvez em estudos futuros, possamos nos aprofundar nessa temática.
Hoje tentarei me ater ao poder da palavra. Entendendo que as palavras tecem os fios invisíveis das relações humanas, podendo construir pontes ou erguer muros entre indivíduos, como vimos no texto inaugural da coluna, podemos entender que a comunicação, enquanto essência da convivência social, carrega uma dualidade intrigante: é capaz de aproximar e fortalecer laços, mas também de corroer reputações e semear ressentimentos.
Entre o bem-dizer e a detração e a fofoca e o elogio, transitamos constantemente por uma linha tênue que define nossa interação com os outros e que tem potencial para mudar como percebemos (o outro) e como somos percebidos por ele. Para mediar essa reflexão, vou me respaldar na complexidade da palavra que também se revela nas análises de Leandro Karnal, Arthur Schopenhauer e Luiz Pondé. Esses três autores, cada um à sua maneira, nos convidam a refletir sobre como a fala pode ser instrumento de afeto ou de destruição.
Na obra “A Detração: breve ensaio sobre o maldizer” (Ed. Unisinos, 2016, 102 p.), Karnal nos convida a refletir sobre a prática de falar mal dos outros como um traço profundamente enraizado na cultura e no comportamento humano. Ele nos lembra que a fofoca ultrapassa os limites do vício e se constitui como um hábito social que define relações e hierarquias. Essa dimensão estratégica da fala é abordada sob outra perspectiva por Arthur Schopenhauer em “A Arte de Ter Razão” (Ed. Edipro, 2019, 80 p.). Enquanto Karnal investiga a detração como um comportamento cotidiano, Schopenhauer desmonta os mecanismos da argumentação que, não raras as vezes, se distanciam da verdade para alcançar a persuasão. O filósofo alemão sugere que os debates, conversas e diálogos nem sempre são guiados por um desejo honesto de esclarecer ideias, mas sim pela necessidade de vencer e subjugar o outro. Aqui, a palavra torna-se ferramenta de disputa e, muitas vezes, de dominação. O que me leva a questionar: até que ponto perguntamos para compreender? Quando argumentamos para esclarecer? Até que ponto, nos diálogos cotidianos, nos deixamos levar pela ânsia de reafirmar nossas próprias convicções?
Para nos dar alguma luz nesta breve, mas importante reflexão, Pondé, em “A Era do Ressentimento” (Ed. Globo Livros, 2019, 120 p.), amplia essa discussão ao situar a detração e a retórica dentro de um contexto emocional e social maior. Ele argumenta que vivemos tempos em que o ressentimento se tornou uma força dominante, moldando discursos públicos e privados.
Quando criticamos o outro, estamos de fato analisando suas ações ou só projetando nossas frustrações?
O ressentimento, segundo Pondé, nos torna suscetíveis a discursos inflamados e julgamentos precipitados, reforçando ciclos de detração que contaminam a convivência. Se Karnal nos leva a enxergar a fofoca como um comportamento estrutural, Schopenhauer nos alerta sobre a distorção do discurso e Pondé nos faz refletir sobre a dimensão emocional por trás dessas práticas. Juntos, os três autores nos ajudam a entender como a fala pode ser usada tanto para construir quanto para destruir. A fofoca pode unir aqueles que a compartilham, mas também pode ser um instrumento de exclusão; a argumentação pode ser um meio de esclarecimento, mas também de manipulação; e a crítica embora seja necessária, muitas vezes é movida mais pelo ressentimento do que pela verdade.
Então, caro leitor e cara leitora, nos voltamos ao dilema central, não basta simplesmente evitar falar do outro – algo praticamente impossível –, mas sim refletir sobre como e por que o fazemos. Existe uma diferença fundamental entre a crítica construtiva e a detração. Enquanto a primeira busca contribuir para o crescimento e a melhoria de alguém, a segunda se fundamenta na desqualificação, muitas vezes com motivações ocultas – as quais a própria precursora da palavra pode não compreender. Da mesma forma, argumentar pode ser um exercício de inteligência e busca pela verdade, mas também pode ser um jogo de poder onde pouco importa quem está certo, desde que um dos lados saia vencedor.
Se pararmos um instante para avaliar as sensações descritas e as “caras e bocas” de um momento em que uma fofoca acontece, a necessidade de pertencimento e o prazer da retórica se tornam evidentes. Assim, percebe-se que a detração e a polêmica muitas vezes se tornam formas de validação social. Falar do outro pode ser um meio de se sentir incluído em um grupo ou de se destacar em uma roda de conversa no Bar da Tilápia ou em um dos restaurantes na beira do rio Piracicaba. Mas esse processo tem um custo: ao perpetuar discursos, quase sempre negativos, também reforçamos relações baseadas no medo e na desconfiança, em vez de na empatia e no respeito.
Aí cabem escolhas: ignorar e viver ou refletir e agir.
Diante desse cenário, o bem-dizer e o bem-querer emergemcomo alternativas éticas paraum mundo saturado de ressentimento e discurso destrutivo.Não se trata de evitar toda crítica ou de cultivar uma positividade tóxica, mas de reconheceroimpacto de nossas palavras. Acomunicação pode ser um atode generosidade ou de destruição, dependendo de como e porque escolhemos falar. Assim, ostrês autores podem nos fazerrepensar o que dizemos ou podem motivar a nos calar. No geral, certamente, podem ajudar aentender como nossas palavrasconstroem ou corroem o tecidosocial – quer seja na igreja, nafamília, no barzinho ou numacomunidade de amigos.
No fim, entre fofocar e acolher, entre argumentar para vencer e dialogar para compreender, entre criticar para destruir e refletir para crescer, a escolha é sempre nossa. Entendo que o desafio não é evitar o maldizer, mas transformar a palavra em um instrumento que fortaleça, que construa, que aproxime. Afinal, a comunicação é, antes de tudo, um espelho daquilo que somos – e do que escolhemos ser no mundo.
Espero que essas provocações lhe inspirem a conhecer as obras do Karnal, Pondé e Schopenhauer.
Que novas leituras te façam pronunciar boas palavras!

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